Georgino Nissan
Não brindamos a sorte
nem a morte
nem a vida que salvamos
nem a vida que vivemos
nem o fruto que colhemos
nem a glória que almejamos
Não brindamos mistérios que solvemos
Já não temos o calor com que iniciamos
nem parte do ideal com que ingressamos
há seis anos, felizes crianças iludidas
pela falsa auréola dita sacerdócio;
agora, sem disfarce, nestas despedidas,
trazemos a frieza em que nos envolveram
aqueles, nos quais, tão ingênuos confiamos.
Buscamos templo sagrado
de ideal sem misticismo;
vimos na Escola agregado
um hierárquico egoísmo
mascarado em falso heroísmo !
É bem outra a nossa festa – vamos brindar seis anos de
amizades
nascidas de fértil casualidade
crescidas na luta, na angústia,
por vezes no desespero;
firmadas na revolta,
no apoio mútuo para a resistência,
no afrontar à negligência
de quem se quer olvidar
que a Escola, qual seja ela,
tem por missão ensinar.
Pela poeira senil de nossa estrada, vimos chão, cirurgias,
doentes, escadas, cortinas, tapetes, tudo infiltrado e
carimbado de famigerados egos !
O meu, o dele, os de todos, todos deles, ...
dos deuses da hierarquia ! Hierárquica nostalgia ! ...
Nosso eu não existia. Éramos um nada muito pobre a ocupar
espaço muito nobre de nobres cientistas fosfóricos, teóricos,
retóricos, modernistas tradicionais de 1901.
Nossa Escola, num saudoso forte de relíquias transformaram;
novas idéias, novas luzes, nova gente, gente nossa massacraram !
Em nosso hospital, um centro de formação de neuróticos sado-masoquistas planejaram !
A bondade, a espontaneidade, o sorriso, a sinceridade combateram.
Invejando nosso futuro, nossa mocidade,
A um comprimento, respondia a hostilidade.
Dialogaram conosco com metralha em punho !
Com metralha jogaram-nos na rua com nossos pertences.
No dia do terceiro transplante reuniram-se para nos apedrejar
como criminosos, vítimas de seus ensinamentos !
Triste, megera e triste a realidade
tentaram por atos, fatos e maltratos nos desencorajar
nossa ignorância gritaram !
nossos erros arquivaram !
nosso direito esmagaram !
nosso ideal desprezaram !
Nossas diretrizes traçaram à nossa revelia e nós pagamos
pelos erros de nossos opressores.
Senhores, nossa festa é uma afronta !
a nossa gargalhada, o nosso sarcasmo
aos que direta ou indiretamente
tentaram inutilmente levar-nos ao marasmo
edificando barreiras à nossa frente.
Ouvimos, admitimos, humilhamo-nos, mas lutamos,
e...eis-nos aqui...é esta a nossa festa ! ...
o fim de uma nojenta batalha festejamos ! ...
nossa guerra continua ...
Sublime e ingênuo o engano dos nossos queridos pais :
festejaram por seis anos;
Gratos somos à sua ingenuidade que foi o sustentáculo de nossa resistência – lutamos para não decepcioná-los.
Extremamente raras e benditas as mãos que nos guiaram.
Agradecidos somos a poucos que um pouco nos compreenderam; a tão poucos, toda a nossa homenagem, pelo pouco que aprendemos.
$
Foi terrível nossa guerra !
Por tanto mais que mais sofremos
quando nesta hora lembramos
que três colegas que amamos
tragicamente perdemos.
Valter Mauro, Mitsuro Takegima e Antônio Fugii
Viveram conosco, conosco lutaram,
conosco sentiram injustiças, privações, hipócritas opressões !
lutaram confiantes neste dia, no rever do colorido que em
verdade a vida encerra,
mas a morte os recolheu, partidária de nossos opressores,
a morte os tombou por terra !
A tão queridos saudosos, o nosso lamento.
$
Quem somos nós, agora diplomados ?
Elite privilegiada para a qual todo o pais abriu mão ?
Enfeites da Pátria, robôs enfeitados ?
... o leite, o suor e a fome do povo nos alimentou.
sua doença, seu sangue, seu cadáver, o povo nos doou.
Promíscua, infecta, faminta e miserável, a população brasileira espera de nós alguma recompensa : não nos querem para as mãos de suas filhas, nem nossa cultura para exposição. Querem ação !
Mas, nossas mãos estão amarradas ! nossas mágicas mãos, divinas, como querem os idiotas apaixonados pelas próprias, estão acorrentadas pela trágico-cômica estrutura sócio-econômica do país.
A morte sobrevoa a imensa terra brasileira;
gargalha insaciada, ao ver-nos diplomados;
- Que podem contra mim, pobres coitados,
se do governo brasileiro sou parceira ?
A Medicina, na voz senil intransigente,
resignada por si, nos diz contente :
- que habitem casas de barro,
não se combata o “barbeiro”
que se infeste o brasileiro !
Por que combater o Chagas ?
Que fique a morte onde está !
nós temos nova Ciência,
que não olha pra consciência,
... que chamem Dr. Barnard !
Gritamos acorrentados : veja, é fácil, ensine e alimente;
que do pobre a Medicina não se ausente !
combata a desnutrição,
trabalha o povo e lucra a Nação !
Pois vamos fazer reformas !
vamos fazer prevenção !
Gritem livres as indústrias farmacêuticas : onde irá nossa produção ? E bradam de braços dados, a morte, o governo e o estrangeiro :
- Manteremos a miséria, e guerra à subversão !
A esposa do presidente, num gesto assaz comovente,
à Imprensa se declarou : - Oh, que trágica verdade !
disseram-me, crueldade,
que no Brasil,
é estarrecedora a mortalidade infantil !
que tristeza, malvadeza,
nunca perdoarei quem me informou ! ...
Senhores, o Brasil é uma comédia, mas nem todos podem rir.
Diariamente, à nossa frente, desfilam crianças tristonhas,
Famintas, esquálidas, medonhas, com ar de quem já não sente;
São de São Paulo – o maior parque industrial da América Latina !
que diremos das outras ?
São levadas provavelmente por qualquer brisa para a morte ...
e nós vimos, são queimadas como gado na sêca do norte !
E a nossa missão consciente está neste povo, no seu viver tão pungente ...
na gente que diz pra gente que é urgente comer !
gente que pede à gente que não os deixe morrer !
gente que vive e não vive,
que morre e não morre,
não sabe se vive,
não sabe se morre.
É gente que grita, que clama, que grita,
que clama e que grita
mas grita em silêncio,
por forças não Ter ...
E é massa de gente da terra da gente que pode o viver,
que pode um lutar com rumo, com sorte,
sem peste, sem morte,
sem fome e miséria,
quer seja do leste, quer seja do norte !
O que podemos nós por essa gente a quem devemos ?
Não há cirurgia para a fome nem antibiótico contra a miséria !
O governo, num ciclo vicioso, ocioso e malicioso, gasta bilhões
com as doenças de alguns para não gastar milhões prevenindo as
de todos.
Melhor, é convencermos nossas consciências a se conformarem com os ais ...
e vamos ser médicos como todos os profissionais !
e vamos ser deputados para tomarmos banho turco na Assembléia legislativa ! ...
e vamos ser cientistas crônicos e anacrônicos, para pesquisarmos
a cor das calças do bacilo do tétano ou as crises histéricas da Escherichia coli ...
O mal se assesta em verdade,
na inculta mentalidade
de nossa gente enganada
que não sabe que é explorada ;
que pensa alegrar o pobre
com ingênuo gesto nobre
de um cobertor de Natal
pela Liga das Senhoras Menopausadas !
Que usa a grande verba da Nação
em joguetes de canhão
e tiros de festim verde-oliva
e ordem-unida da mesma cor,
para tirar o bolor de sua existência inútil.
Que fuzila o estudante brasileiro para defender a canalha
estrangeira !
Senhores, perdoem-nos, não pudemos trazer aqui um regozijo falso. Lembramos de quando nada sabíamos e percebemos como é triste abrir os olhos para a realidade, como é penoso abraçar uma virtude honesta !
Por isso, o cantar do estudante é dito subversivo ;
por isso o nosso cantar é dito subversivo : -
Quem de longe canta a terra
inspirado na saudade,
esquece toda a maldade,
só canta o bem que ela encerra.
Meu cantar é diferente,
porque ouço dores de morte
da gente de negra sorte
que alegria nunca sente.
Que vale o campo dourado
que a esta terra sustentou
se aquele que o semeou
não passa de escravizado?
Este é o nosso camponês,
nascido num lar infecto,
sem Ter na vida um projeto
que o tire da pequenez.
Não tem chão, não tem cultura,
trabalha sem ter proveito,
só espera ter seu direito
no mundo da sepultura.
Canto o ciclo da tristeza :
não “nostálgica alvorada”,
não “saudosa Pátria amada”,
mas as chagas da pobreza.
Cresce a indústria e a produção
do vil latifundiário,
vive à mingua o operário,
veste trapo o tecelão.
No mundo projeta o nome
nosso hospital altaneiro,
que transplanta um brasileiro
prá cada milhão que morre !
Como cantar a beleza
das praias, dos verdes mares,
das montanhas, dos palmares,
se o homem chora a incerteza ?
Só canta o bem a canção
de quem não sente esta terra,
de quem não vive esta guerra,
de quem não tem coração !
Por nossos corações,
não brindamos a sorte, nem a morte,
nem a vida que salvamos,
nem a vida que vivemos,
nem o fruto que colhemos,
nem a glória que almejamos.
$
Disto tudo ...levados em nós,
continuaremos ...
Com os olhos fundos da Carolina ...
guardaremos ...
e em vivas rodas carregaremos.
Nos despediremos da boca da noite
... e com a banda,
acompanharemos o Sabiá do dia.
Num pálido sorriso de esforço,
subiremos
e deles, sem nos volver,
esqueceremos ...
Conosco mesmos
lembraremos daqueles últimos,
já despedidos
e choraremos.
De todos os bons,
jamais olvidaremos
E partiremos em busca do amor das rosas
pra conhecer as Margaridas, Helenas,
Berenices, Marilenas ...
E quando,
libertos do espírito,
desprovidos do mundo,
num último impulso nos abraçaremos
... e morreremos longe
esplendidamente longe...
-.-.-.--.-.-.-.-.-.-.-.-.-.-.-.-.-.-.-.-.-.-.-.-.-.-.-.-.-.-.-.-.-.-.-.-.-.-.-.-.-.-.-.-.-