51ª. Turma — 1963 a 1968
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Discurso de Formatura da 51 ª Turma da FMUSP

Georgino Nissan                              

                                               

Não brindamos a sorte
                    nem a morte
                    nem a vida que salvamos
                    nem a vida que vivemos
                    nem o fruto que colhemos
                    nem a glória que almejamos

Não brindamos mistérios que solvemos
                    Já não temos o calor com que iniciamos
                    nem parte do ideal com que ingressamos
                    há seis anos, felizes crianças iludidas
                    pela falsa auréola dita sacerdócio;
                    agora, sem disfarce, nestas despedidas,
                    trazemos a frieza em que nos envolveram
                    aqueles, nos quais, tão ingênuos confiamos.

Buscamos templo sagrado
de ideal sem misticismo;
vimos na Escola agregado
um hierárquico egoísmo
mascarado em falso heroísmo !

É bem outra a nossa festa – vamos brindar seis anos de
                                                                              amizades
                    nascidas de fértil casualidade
                    crescidas na luta, na angústia,
                    por vezes no desespero;
                    firmadas na revolta,
                    no apoio mútuo para a resistência,
                    no afrontar à negligência
                    de quem se quer olvidar
                    que a Escola, qual seja ela,
                    tem por missão ensinar.

Pela poeira senil de nossa estrada, vimos chão, cirurgias,
doentes, escadas, cortinas, tapetes, tudo infiltrado e
carimbado de famigerados egos !
                    O meu, o dele, os de todos, todos deles, ...
dos deuses da hierarquia ! Hierárquica nostalgia ! ...
Nosso eu não existia. Éramos um nada muito pobre a ocupar
espaço muito nobre de nobres cientistas fosfóricos, teóricos,
retóricos, modernistas tradicionais de 1901.

Nossa Escola, num saudoso forte de relíquias transformaram;
novas idéias, novas luzes, nova gente, gente nossa massacraram !
Em nosso hospital, um centro de formação de neuróticos sado-masoquistas planejaram !

A bondade, a espontaneidade, o sorriso, a sinceridade combateram.
Invejando nosso futuro, nossa mocidade,
A um comprimento, respondia a hostilidade.
Dialogaram conosco com metralha em punho !
Com metralha jogaram-nos na rua com nossos pertences.
No dia do terceiro transplante reuniram-se para nos apedrejar
como criminosos, vítimas de seus ensinamentos !
          Triste, megera e triste a realidade
          tentaram por atos, fatos e maltratos nos desencorajar
                    nossa ignorância gritaram !
                    nossos erros arquivaram !
                    nosso direito esmagaram !
                    nosso ideal desprezaram !

Nossas diretrizes traçaram à nossa revelia e nós pagamos
pelos erros de nossos opressores.
                    Senhores, nossa festa é uma afronta !
                    a nossa gargalhada, o nosso sarcasmo
                    aos que direta ou indiretamente
                    tentaram inutilmente levar-nos ao marasmo
                    edificando barreiras à nossa frente.

Ouvimos, admitimos, humilhamo-nos, mas lutamos,
e...eis-nos aqui...é esta a nossa festa ! ...
o fim de uma nojenta batalha festejamos ! ...
                                        nossa guerra continua ...

Sublime e ingênuo o engano dos nossos queridos pais :
          festejaram por seis anos;
Gratos somos à sua ingenuidade que foi o sustentáculo de nossa resistência – lutamos para não decepcioná-los.

Extremamente raras e benditas as mãos que nos guiaram.
Agradecidos somos a poucos que um pouco nos compreenderam; a tão poucos, toda a nossa homenagem, pelo pouco que aprendemos.
                                             $
          Foi terrível nossa guerra !
                    Por tanto mais que mais sofremos
                    quando nesta hora lembramos
                    que três colegas que amamos
                    tragicamente perdemos.
Valter Mauro, Mitsuro Takegima e Antônio Fugii

Viveram conosco, conosco lutaram,
conosco sentiram injustiças, privações, hipócritas opressões !
lutaram confiantes neste dia, no rever do colorido que em
verdade a vida encerra,
mas a morte os recolheu, partidária de nossos opressores,
a morte os tombou por terra !

          A tão queridos saudosos, o nosso lamento.

                                             $

Quem somos nós, agora diplomados ?
Elite privilegiada para a qual todo o pais abriu mão ?
Enfeites da Pátria, robôs enfeitados ?
          ... o leite, o suor e a fome do povo nos alimentou.
          sua doença, seu sangue, seu cadáver, o povo nos doou.

Promíscua, infecta, faminta e miserável, a população brasileira espera de nós alguma recompensa : não nos querem para as mãos de suas filhas, nem nossa cultura para exposição. Querem ação !
          Mas, nossas mãos estão amarradas ! nossas mágicas mãos, divinas, como querem os idiotas apaixonados pelas próprias, estão acorrentadas pela trágico-cômica estrutura sócio-econômica do país.

                    A morte sobrevoa a imensa terra brasileira;
                    gargalha insaciada, ao ver-nos diplomados;
                    - Que podem contra mim, pobres coitados,
                    se do governo brasileiro sou parceira ?

A Medicina, na voz senil intransigente,
resignada por si, nos diz contente :
- que habitem casas de barro,
não se combata o “barbeiro”
que se infeste o brasileiro !
Por que combater o Chagas ?
Que fique a morte onde está !
nós temos nova Ciência,
que não olha pra consciência,
... que chamem Dr. Barnard !
          Gritamos acorrentados : veja, é fácil, ensine e alimente;
                    que do pobre a Medicina não se ausente !
                    combata a desnutrição,
                    trabalha o povo e lucra a Nação !
                    Pois vamos fazer reformas !
                    vamos fazer prevenção !
Gritem livres as indústrias farmacêuticas : onde irá nossa produção ? E bradam de braços dados, a morte, o governo e o estrangeiro :
          - Manteremos a miséria, e guerra à subversão !

A esposa do presidente, num gesto assaz comovente,
à Imprensa se declarou : - Oh, que trágica verdade !
                    disseram-me, crueldade,
                    que no Brasil,
                    é estarrecedora a mortalidade infantil !
                    que tristeza, malvadeza,
                    nunca perdoarei quem me informou ! ...
Senhores, o Brasil é uma comédia, mas nem todos podem rir.
Diariamente, à nossa frente, desfilam crianças tristonhas,
Famintas, esquálidas, medonhas, com ar de quem já não sente;
São de São Paulo – o maior parque industrial da América Latina !
que diremos das outras ?
São levadas provavelmente por qualquer brisa para a morte ...
e nós vimos, são queimadas como gado na sêca do norte !
E a nossa missão consciente está neste povo, no seu viver tão pungente ...
na gente que diz pra gente que é urgente comer !
gente que pede à gente que não os deixe morrer !
                    gente que vive e não vive,
                    que morre e não morre,
                    não sabe se vive,
                    não sabe se morre.
É gente que grita, que clama, que grita,
                            que clama e que grita
                            mas grita em silêncio,
                            por forças não Ter ...
E é massa de gente da terra da gente que pode o viver,
                            que pode um lutar com rumo, com sorte,
                                        sem peste, sem morte,
                                        sem fome e miséria,
                                        quer seja do leste, quer seja do norte !
O que podemos nós por essa gente a quem devemos ?
Não há cirurgia para a fome nem antibiótico contra a miséria !
O governo, num ciclo vicioso, ocioso e malicioso, gasta bilhões
com as doenças de alguns para não gastar milhões prevenindo as
de todos.
Melhor, é convencermos nossas consciências a se conformarem com os ais ...
e vamos ser médicos como todos os profissionais !
e vamos ser deputados para tomarmos banho turco na Assembléia legislativa ! ...
e vamos ser cientistas crônicos e anacrônicos, para pesquisarmos
a cor das calças do bacilo do tétano ou as crises histéricas da Escherichia coli ...
          O mal se assesta em verdade,
          na inculta mentalidade
          de nossa gente enganada
          que não sabe que é explorada ;
          que pensa alegrar o pobre
          com ingênuo gesto nobre
          de um cobertor de Natal
          pela Liga das Senhoras Menopausadas !
          Que usa a grande verba da Nação
          em joguetes de canhão
          e tiros de festim verde-oliva
          e ordem-unida da mesma cor,
          para tirar o bolor de sua existência inútil.
          Que fuzila o estudante brasileiro para defender a canalha
          estrangeira !
          Senhores, perdoem-nos, não pudemos trazer aqui um regozijo falso. Lembramos de quando nada sabíamos e percebemos como é triste abrir os olhos para a realidade, como é penoso abraçar uma virtude honesta !
          Por isso, o cantar do estudante é dito subversivo ;
          por isso o nosso cantar é dito subversivo : -
Quem de longe canta a terra
inspirado na saudade,
esquece toda a maldade,
só canta o bem que ela encerra.

Meu cantar é diferente,
porque ouço dores de morte
da gente de negra sorte
que alegria nunca sente.

Que vale o campo dourado
que a esta terra sustentou
se aquele que o semeou
não passa de escravizado?

Este é o nosso camponês,
nascido num lar infecto,
sem Ter na vida um projeto
que o tire da pequenez.

Não tem chão, não tem cultura,
trabalha sem ter proveito,
só espera ter seu direito
no mundo da sepultura.

Canto o ciclo da tristeza :
não “nostálgica alvorada”,
não “saudosa Pátria amada”,
mas as chagas da pobreza.

Cresce a indústria e a produção
do vil latifundiário,
vive à mingua o operário,
veste trapo o tecelão.

No mundo projeta o nome
nosso hospital altaneiro,
que transplanta um brasileiro
prá cada milhão que morre !

Como cantar a beleza
das praias, dos verdes mares,
das montanhas, dos palmares,
se o homem chora a incerteza ?

Só canta o bem a canção
de quem não sente esta terra,
de quem não vive esta guerra,
de quem não tem coração !

Por nossos corações,
                              não brindamos a sorte, nem a morte,
                              nem a vida que salvamos,
                              nem a vida que vivemos,
                              nem o fruto que colhemos,
                              nem a glória que almejamos.

                                  $

Disto tudo ...levados em nós,
                    continuaremos ...
Com os olhos fundos da Carolina ...
                    guardaremos ...
e em vivas rodas carregaremos.

                              Nos despediremos da boca da noite
                              ... e com a banda,
                              acompanharemos o Sabiá do dia.

Num pálido sorriso de esforço,
subiremos
e deles, sem nos volver,
esqueceremos ...

Conosco mesmos
lembraremos daqueles últimos,
já despedidos
e choraremos.

De todos os bons,
jamais olvidaremos

E partiremos em busca do amor das rosas
pra conhecer as Margaridas, Helenas,
Berenices, Marilenas ...

                    E quando,
                    libertos do espírito,
                    desprovidos do mundo,
                    num último impulso nos abraçaremos
                                        ... e morreremos longe

                                        esplendidamente longe...

                                        -.-.-.--.-.-.-.-.-.-.-.-.-.-.-.-.-.-.-.-.-.-.-.-.-.-.-.-.-.-.-.-.-.-.-.-.-.-.-.-.-.-.-.-.-

                                             
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